Watchmen, não deve ser novidade para a maioria, é a adaptação da premiada série em quadrinhos escrita por Alan Moore e desenhada por Dave Gibbons. A obra original é considerada um marco da sua mídia e do seu gênero, e não exatamente sem razão – é de fato uma obra ímpar, uma desconstrução crítica e aprofundada da figura do super-herói mascarado, tema que depois acabaria se tornando praticamente um chavão em histórias posteriores, e com diversas camadas e elementos narrativos que nada devem em qualidade literária a qualquer grande nome do romance em prosa. Adaptar para o cinema uma obra dessa importância, assim, é com certeza um feito corajoso, e nisso ao menos o diretor Zack Snyder merece algum crédito. Já quanto ao resto do filme, nem tanto assim.
Esteticamente, é inegável que ele possui uma série de bons méritos. Toda a indumentária dos personagens principais, por exemplo, em geral ficaram bem bacanas, e isso sem deixarem de ser fiéis às originais, o que é um feito e tanto se considerarmos a quantidade de colantes coloridos – a exceção mais notável talvez seja a do Coruja, que teve que ser redesenhada para se tornar viável em um filme com atores reais, mas isso nem de longe é um ponto negativo. A seqüência dos créditos iniciais, em que a história dos vigilantes do passado é mostrada em uma série de cenas que parecem fotos em movimento, com The Times They Are A-Changin’, do Bob Dylan, tocando ao fundo, também ficou ótima, além de bastante tocante. Aliás, toda a seleção de músicas pop da trilha incidental em geral é bem bacana, com destaque para The Sound of Silence, do Simon & Garfunkel, durante o enterro do Comediante, e a genial citação a Apocalipse Now.
Esse cuidado estético, no entanto, não deixa também de passar do ponto em alguns momentos, às vezes beirando mesmo o obsessivo. Acho que os casos mais notáveis são as cenas de ação, que sofrem com um excesso de pose, violência gore e câmera lenta, remetendo à experiência do diretor com 300 – exceto que, o que no filme sobre os espartanos funcionava bem devido às cenas de ação serem realmente o elemento principal (bom, talvez depois das frases de efeito do Leônidas, mas elas têm uma importância bem próxima), em Watchmen acaba contrastando muito com o lado mais dramático da história. No fim, ela acaba se perdendo entre suas pretensões, sem se decidir se quer ser uma história de ação estetizante e caricata, à lá Sin City, ou um drama sobre pessoas fantasiadas combatendo o crime.
E acontece que esse era justamente o ponto fundamental da série original – mais do que as fantasias coloridas e planos mirabolantes fazendo críticas genéricas ao momento político, era o desenvolvimento humano dos personagens, sobre o que faz uma pessoa comum dedicar a sua vida ao combate ao crime sem receber nada em troca, muitas vezes nem ao menos reconhecimento, que se destacava. Não dá pra dizer que o filme não tenta focar esse lado, valorizando os diálogos e os relacionamentos entre os protagonistas; no entanto, o que nos quadrinhos é feito de forma genial, com uma riqueza de recursos que vão desde a narrativa fragmentada, com diversas mudanças no tempo e no foco narrativo, até a inclusão de apêndices com entrevistas fictícias e outros textos relacionados aos personagens, nem sempre pode ser passado com o mesmo efeito para a narrativa do cinema. Isso acaba deixando o diretor em um dilema: por um lado ele quer, e efetivamente tenta, se manter o mais fiel possível ao material original, muitas vezes fazendo questão de usar cenas, enquadramentos e diálogos rigorosamente iguais; por outro, se ele se mantém fiel demais, o público comum, aquele que não deve acompanhar os lançamentos e campanhas paralelas ao filme, não vai entender a história, e assim é necessário modificar textos, incluir informações fora de contexto em diálogos, e mesmo cortar algumas cenas que teriam um impacto dramático mais marcante em prol de cenas ação, para não deixar o desenvolvimento cansativo demais – o próprio desfecho, aliás, teve que ser mudado da versão original justamente porque ele não seria entendido sem toda essa informação extra que os quadrinhos transmitem em paralelo à trama principal.
O desenvolvimento de alguns personagens sofre bastante com estas mudanças. O caso mais emblemático acredito que seja o do Ozymandias, que tem pouco tempo de tela e acaba tendo que explicar suas motivações e expressar sua personalidade de forma um tanto apressada. O Roscharch também teve seu momento de protagonismo particular bastante reduzido, mas, como o roteiro parte justamente dos seus monólogos internos, acaba não sofrendo tanto com isso. O Dr. Manhattan tem mais tempo de tela, mas no fim tem um efeito final meio ambíguo – é um pouco estranho ver alguns diálogos de conteúdo tão passional, como o que ele trava com a Espectral em Marte, serem ditos sem qualquer emoção; não posso dizer que isso seja um defeito, já que é um elemento importante da personalidade do personagem, mas é diferente ler um diálogo assim em uma HQ e ouvi-la no cinema, e não consigo deixar de achar estranho de qualquer jeito. A grande exceção, e o personagem que facilmente mais se destaca, é o Comediante, talvez justamente por estar onipresente em meio aos devaneios e pensamentos dos demais personagens sem nunca aparecer de fato para se justificar, e com isso acaba despertando alguma coisa de simpatia a seu respeito, por mais que, em um primeiro momento, devesse acontecer justamente o oposto.
Enfim, não sei dizer se eu não estou sendo excessivamente chato pelo fato de a obra original ser de uma importância tão grande, e de eu, ao menos, considerá-la tão genial. Watchmen certamente não vai ser para o cinema de super-heróis o que foi para os quadrinhos – se fosse chutar, eu diria que esse papel cabe a O Cavaleiro das Trevas, provavelmente -, e é um pouco isso que acaba deixando a experiência toda um pouco frustrante – afinal, não haveria outra razão para justificar a produção, e a impressão final que fica é mesmo a de um exercício vazio de estilo e virtusismo. Isso fica mais visível principalmente se a compararmos com outra obra do Alan Moore levada para o cinema não muito tempo atrás, e que foi adaptada de forma brilhante para um contexto e temas mais contemporâneos – V de Vingança, dirigida e produzida pelos irmãos Wachowsky. Imagino se não teria sido mais interessante se um caminho semelhante fosse seguido, aproveitando que as histórias de super-heróis atualmente estão tão em evidência no cinema como sempre foram nos quadrinhos – mas aí eu também estou divagando, e não seria justo julgar o filme apenas em cima desta possibilidade, entre todas as outras que ele poderia seguir. No fim, até acredito ser possível que quem for capaz de se desligar disso tudo acabe encontrando um filme interessante e divertido, o que, na pior das hipóteses, ele não chega a deixar de ser.
By Mephisto